quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Até onde ir?

Os prazeres e os perigos da tradução criativa

por James Campbell

O primeiro romance moderno francês que li, aquele que trouxe à minha boca termos como “vanguarda” e “surrealismo”, foi As Crianças Terríveis, de Jean Cocteau. Vibrei com as travessuras extravagantes dos irmãos Paul e Elisabeth, que logo passam a dormir juntos no “quarto” que dividem com seus amigos adolescentes. A vida na Paris de Cocteau é “o jogo”, com suas próprias regras ou não regras, um estado particular do espírito na passagem entre a infância e a adolescência. Todos os que amam este breve romance buscam destrancar a porta secreta que há entre seus próprios quartos e o quarto na rua Montmartre. Quando a abro agora, sou eu próprio, com a acuidade visual dos 20 anos de idade na Escócia, quem começa a ler, tanto quanto o “eu” experiente e com a vista cansada de quase quatro décadas.

Não havia Café de Flore em Glasgow no início dos anos 1970. A margem esquerda do rio Clyde ainda dedicava-se à construção de embarcações, mas o simbolismo e o existencialismo eram o prato do dia nos pubs em torno da universidade, onde Camus era um herói tão grande quanto Bob Dylan. Aqueles que estudavam francês encaravam seu romance O Estrangeiro na versão original; outros, nos quais me incluo, preferiam a opção conveniente da tradução de 1946, de Stuart Gilbert, intitulada The Stranger – conhecida pelos leitores britânicos como The Outsider. A pressão do calor do meio-dia em Meursault antes de seu ato fatal era muito debatida, assim como a importância de suas palavras iniciais: “Minha mãe morreu hoje. Ou, talvez, ontem; não tenho como ter certeza.” Foi por causa do crime de não ter sentimentos que Meursault se viu diante da guilhotina? Melhor pedir outra rodada.

No fim do ano passado, como dose de extra de isolamento contra um rigoroso inverno londrino, embarquei em um projeto de ler em francês os romances que eu havia devorado tão vorazmente em traduções e que julgava terem ajudado em minha formação. Peguei de novo o livro de Camus, mas dessa vez em uma versão compacta de bolso datada de 1963. A ilustração da capa mostra Meursault na praia nas imediações de Argel, de terno, mas com a cabeça crucialmente descoberta, absorvido entre a imensidão de areia e céu. Instantes depois, ele atiraria cinco balas no árabe que insultara um amigo seu.

À medida que lia, de vez em quando comparava uma frase do texto em francês com a versão de Gilbert – e os resultados eram surpreendentes. Gilbert, amigo de James Joyce na Paris dos anos 1920, adiciona trechos e muda o sentido de outros. Uma parte dessa interferência é trivial, mas qualquer rearranjo nos atributos de um herói, em sua maneira de falar e responder perguntas, muda a percepção de quem é aquele personagem, mesmo que de forma pequena. Quando Meursault é apanhado ao final de uma partida de futebol e reconhecido por um dos jogadores, devolve o cumprimento de maneira silenciosa “en secouant la tête”, literalmente, “assentindo com a cabeça”. Gilbert escreve “acenei com a mão” e inventa um cumprimento verbal: “Bom trabalho!”. Quando Meursault entra em seu restaurante de hábito, a proprietária Céleste pergunta “si ça allait quand même”, que é como dizer “se tudo estivesse bem, de qualquer forma”. Meursault estava no funeral de sua mãe. “Je lui ai dit que oui et que j’avais faim”. “Disse a ela que sim e que estava com fome”.

O Meursault de Gilbert não responde “sim”. Responde “não”, e para uma outra pergunta. Ele está com muita fome. Depois do café “para terminar” – outra redundância – e uma soneca em casa, “fumei um cigarro antes de sair da cama”. Como Gilbert sabia que Meursault fumava na cama é um mistério, já que Camus não diz isso. Todos esses exemplos, exceto o aceno de mão, ocorrem em um parágrafo. A tradução americana, de Matthew Ward, publicada em 1988 como The Stranger, é bem mais de acordo com o original.

Surpresa semelhante me aguardava quando passei para As Crianças Terríveis. O francês de Cocteau é bem mais mercurial que o de Camus, e às vezes recorri à minha velha tradução de Rosamond Lehmann, para a Penguin. Ela omite muitas das divisões de capítulo e espaços entre linhas, introduzindo os seus próprios. Mais importante, dá pouca atenção ao andamento e ao ritmo da prosa de Cocteau – seu sotaque francês. O capítulo no qual encontramos Elisabeth após a morte de seu marido, Michael, começa com uma lista que até leitores com pouco francês entendem com facilidade: “l’héritage, les signatures, les conférences, avec les administrateurs...”. Lehmann abre o mesmo trecho da seguinte forma: “Elisabeth se sentia bastante incapaz de lidar com toda a desgastante parafernália legal de sua viuvez...”. Cocteau escreve que as reuniões e tarefas “accablaient” – arrasavam – Elisabeth. Isso à parte, a frase é capricho da tradutora.

A questão da fidelidade do tradutor burlando as fronteiras nos trabalhos dos quais se encarrega já foi bastante debatida. Todos que se dedicam ao ofício com consciência sabem que estão criando algo novo. O Kafka que muitos de nós lemos pela primeira vez era, em parte, uma construção de Edwin e Willa Muir. Os leitores, como um todo, se preocupam pouco com isso, sendo gratos por ter acesso a bens estrangeiros. No entanto, imagino com frequência o que as pessoas querem dizer quando afirmam gostar da maneira como escreve, por exemplo, Haruki Murakami. Ou Pasternak. Ou o que exatamente os acadêmicos suecos reverenciavam quando deram o Prêmio Nobel de 2000 para Gao Xingjian. E agora terei que me perguntar qual era minha intenção quando falei tanto de Camus e sua prosa baseada nas sensações ou quando dissequei o quase surrealismo de Cocteau. Afinal, o que eu lia eram romances em inglês de Gilbert e Lehmann baseados em ideias originais de escritores franceses.

Na metade do século passado, a vida na França, para muitos britânicos, parecia ser quase uma forma diferente de civilização, com princípios morais perigosos e costumes pitorescos no comer e no vestir. As formas inglesas de expressão intelectual, em larga medida, são empíricas, enquanto o pensamento francês tende mais para a abstração. Gilbert talvez tenha achado que poderia fazer mais ou menos como quisesse com o primeiro romance de um jovem escritor franco-argelino. Porém, quando o estilo de um trabalho é parte integral de sua moral, como no caso do livro de Camus, há espaço, então, para argumentos contrários. Tenho tentado pensar em como uma mão acenando funciona melhor em inglês do que uma cabeça assentindo, ou como pode uma pergunta que sugere um “não” em vez de um “sim” ser imprescindível para gerar algum tipo necessário de reconhecimento em termos locais, mas não tive êxito.

Os tradutores tomam menos liberdades hoje em dia. O romancista e crítico Tim Parks escreveu recentemente sobre a padronização e achatamento dos textos estrangeiros, criando o efeito de haver um “tradutorês internacionalizante” – globalmente palatável, mas bastante insosso. Parks sugere que escritores holandeses, italianos e albaneses estão cada vez mais aptos a soar iguais.

Conforme encarava esses livros no inverno passado, fiquei excitado com a experiência de ler pela primeira vez algo com que acreditava estar familiarizado, mas também tinha a sensação de estar negando parte do meu passado. Busquei outro romance, O Grande Meaulnes, de Alain-Fournier, que morreu nos primeiros eventos da Primeira Guerra, dias antes de completar 28 anos. Apesar de ter sido escrito em 1912, o livro é ambientado nos anos 1890 e possui um charme bucólico bem distante da anarquia do quarto ou de um ato absurdo em uma praia de Argel. Em inglês, a atmosfera sempre me pareceu nebulosa, obscurecendo a essência dos personagens e confundindo a própria história. Entretanto, ao ler em francês quatro ou cinco páginas por dia durante várias semanas, fiquei extasiado. Vez ou outra, dava uma olhadela em uma das duas traduções que tenho em minhas estantes, uma de Frank Davison, de 1959, e outra de Robin Buss, de 2007 – esta, como The Lost Estate. Perto do fim, cheguei ao passeio na floresta entre o narrador e o jovem Frantz, cuja desistência de casar desencadeia a ação principal. A primeira linha do capítulo “L’Appel de Frantz” (“O Chamado de Frantz”) diz: “Hou-ou!”. Essa parte, pelo menos, com certeza poderia ser mantida assim? Pelo jeito, não. Davison arranca o ponto de exclamação e o substitui por um decrescente “Hou-ou...”. Buss mantém o ponto de exclamação, mas altera o choro de Frantz para “Whoo, whoo!”. Havia alguma real necessidade de mudar a estrutura de um choro sem palavra alguma? Não. Quer dizer, troque para “sim”.

James Campbell é autor de “Exiled in Paris: Richard Wright, James Baldwin, Samuel Beckett, and Others on the Left Bank”

Tradução do artigo The Pleasures and Perils of Creative Translation, publicado no site do jornal americano The New York Times em 9 de junho de 2011.
http://www.nytimes.com/2011/06/12/books/review/the-pleasures-and-perils-of-creative-translation.html?_r=1

sexta-feira, 18 de março de 2011

O rock e as letras

O rock estrela a ficção

O rock and roll é definido por seus excessos. Ficcionalizá-lo pode parecer, na melhor das hipóteses, uma má imitação

por John Lucas

Foi com grande prazer, enquanto adolescente, que me deparei com uma cópia de Espedair Street, de Iain Banks. Tendo sido criado nos romances do século XIX, foi uma experiência libertadora descobrir um texto cujo foco parecia para mim o máximo em termos do que significa a contemporaneidade: o estrelato no rock. Como protagonista de Espedair Street, Dan Weir (“Weird”), o baixista feio e sem esperança da bem sucedida banda de rock escocês Frozen Gold. Banks mapeia sua ascensão à fama através dos anos 1970, em meio às típicas drogas e excessos, até a separação da banda, o que torna Weir um recluso morador de Glasgow a se perguntar o que fazer com o restante de sua vida.

Naquele tempo, tendo tido muito pouca exposição à ficção contemporânea, ver que um livro podia tratar de tais assuntos era emocionante, uma revelação. Hoje em dia, obviamente, estamos acostumados com o exame detalhado da cultura pop na ficção literária, com romancistas como Pynchon, Vonnegut e David Foster Wallace escrevendo com detalhes sobre TV e coisas afins. Nas palavras de Wallace: “Uma das coisas de reconhecimento mais fácil a respeito da ficção pós-moderna do [último] século foi o desdobramento estratégico, por parte do movimento, de referências da cultura pop – nomes de marcas, celebridades, programas de televisão – até mesmo em seus projetos mais elevados de alta arte”. Mesmo assim, estrelas do rock literárias – e aqui me refiro a protagonistas ficcionais maiores – parecem surgir relativamente pouco, dado quão saturada está nossa cultura pela música popular.

Há várias razões prováveis para tal. Para começar, há o problema da autenticidade. O rock and roll se define por sua teatralidade e excesso inerentes. Ficcionalizá-lo pode parecer, na melhor das hipóteses, uma má imitação da coisa de fato e, na pior, parecer algo deseperançosamente forçado, ou até ruim. De qualquer forma, há autobiografias de rock suficientemente boas – Vida, de Keith Richards, e Tainted Life, de Marc Almond, para citar duas. Além disso, não é tarefa fácil descrever música sem soar jornalístico ou sem recorrer a clichês ameaçadores, do tipo “e a batida vibrou por nossos corpos”. Por fim, letras de música numa página – até mesmo as verdadeiras – parecem, francamente, uma porcaria. Talvez seja por isso que estrelas do rock frequentemente tenham apenas pequenas pontas na ficção – tal como no caso da The Heaven Seventeen em Laranja Mecânica e nas várias bandas de Pynchon – ou, quando são as personagens principais, a ação transcorre, na maior parte, longe do estádio e do estúdio.

Um desses tais ‘performers’ fora do trabalho é Bryan Metro, de Bret Easton Ellis, um deus do rock decadente, depravado e excessivamente drogado que aparece em “Discovering Japan”, um dos contos de maior sucesso de The Informers, obra de 1994. Como é típico na obra de Ellis, a ênfase está no comportamento niilista em hotéis caros: “nu, acordando banhado de suor numa cama grande de uma suíte do terraço do Hilton de Tóquio, lençóis amarrotados no chão, uma jovem garota nua dormindo ao meu lado...”. Destroçando quartos, sendo sondado por executivos de cinema para um ridículo filme ‘estrela do rock no espaço’, ingerindo Librium e fazendo ligações interurbanas para casa para falar com as crianças chapado de cocaína, a história apresenta algo que soa como um retrato verdadeiro da solidão e desorientação das turnês.

Com Liberdade, do ano passado, Jonathan Franzen também entrou neste território com sua descrição de Richard Katz, carismático vocalista da banda punk The Traumatics. Cansado dos holofotes (ou, mais precisamente, do apelo cult limitado que alcançou), Katz aposenta-se da indústria para trabalhar como braçal, só para voltar com a Walnut Surprise, um conjunto de country alternativo que atrai a indesejada atenção do ‘mainstream’ com o álbum Nameless Lake. Um dos elementos mais memoráveis da narrativa de Katz é a entrevista que ele dá a Zachary, um jovem fã ansioso para impressionar uma garota. Suas respostas deliberadamente provocativas, que são rapidamente disseminadas online – “P: Então, qual é o próximo passo para Richard Katz?, R: Estou me envolvendo com política dos Republicanos” –, talvez tenham uma dívida com o maior roqueiro literário de todos os tempos: Bucky Wunderlick, o herói a la Dylan de Don Delillo, que, num determinado ponto de Great Jones Street, diz a um entrevistador que irá corroborar com qualquer citação que ele decidir inventar.

O romance de Delillo de 1973 mapeia a fuga de Bucky do mundo da música rumo a um apartamento sem água quente em Manhattan. Ele é perseguido por seu empresário e seus antigos colegas de banda, que querem que ele retorne para o grupo e lance The Mountain Tapes, uma coleção de canções ‘perdidas’. Bucky também se torna envolvido com as maquinações de uma célula terrorista chamada “Comuna da Fazenda do Vale Feliz”, que manufaturou uma droga que corrompe os núcleos da linguagem no cérebro. Paranoico e elíptico, aqui está a estrela do rock como um avatar em um mundo confuso e fragmentário. Para Delillo, a fama é “um jogo no lado oposto. É uma situação extrema. Acho que o rock é uma música de solidão e isolamento... Um homem com uma mente parcialmente destruída, sozinho num quarto alugado. Barulho, eletricidade, excesso, Vietnã – tudo isso está amarrado em Great Jones Street”.

Nomes de banda de rock fictícias podem ser, com freqüência, improváveis – Frozen Gold? Walnut Surprise? –, mas o estrelato musical provou ser um meio útil através do qual vários escritores examinaram tanto a natureza da celebridade quanto a cultura mais ampla. Ultimamente, a observação de Bucky Wunderlick de que “talvez a única lei natural que se vincule à fama natural seja a de que o homem famoso é forçado, eventualmente, a cometer suicídio” soa cada vez mais profética.

Tradução do artigo Rock stars in fiction, publicado no site do jornal britânico The Guardian em 17 de março de 2011.
http://www.guardian.co.uk/books/booksblog/2011/mar/17/rock-stars-in-fiction

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

De Yoko, sobre John...


O fazedor de chá

por Yoko Ono

John e eu estamos em nossa cozinha do Dakota no meio da noite. Três gatos – Sasha, Micha e Charo – estão olhando para John, que está fazendo chá para nós dois.

Sasha é todo branco, Micha é todo preto. Ambos são gatos persas lindos e cheios de classe. Charo, por outro lado, é uma vira-lata. John costumava ter um amor especial por ela. “Você tem uma cara engraçada, Charo!”, ele diria, dando-lhe uns tapinhas.

“Yoko, Yoko, você tem primeiro que colocar os saquinhos de chá, e só então a água quente”. Por ser inglês, John assumiu o papel do fazedor de chá. Então, desisti de fazer.

Era bom estar acordada no meio da noite, quando não havia barulho na casa, e bebericar o chá que John faria. Uma noite, entretanto, ele disse: “Estava falando com a Tia Mimi hoje à tarde e ela diz que se deve colocar primeiro a água quente, e só então o saquinho de chá. Eu seria capaz de jurar que ela me ensinou a colocar primeiro o saquinho, mas...”

“Então estávamos fazendo errado todo esse tempo?”

“É...”

Nós dois tivemos um frouxo de riso. Isso foi em 1980. Nenhum de nós sabia que aquele seria o último ano de nossa vida juntos.

Este teria sido o 70º aniversário de John se tão somente ele estivesse aqui. Mas as pessoas não estão questionando se ele está aqui ou não. Elas apenas o amam e estão mantendo-o vivo com seu amor. Recebi bilhetes de pessoas de todos os cantos do mundo avisando-me que elas estão celebrando este ano em agradecimento a John por tê-las dado tanto em seus curtos 40 anos na Terra.

O presente mais importante que recebemos dele não foram palavras, mas atos. Ele acreditava na verdade e tinha ousado levantar a voz. Todos sabíamos que, com isso, ele incomodaria certa gente poderosa. Mas esse era John. Ele não poderia ter sido de outro jeito. Se ele estivesse aqui agora, acho que ainda estaria gritando a verdade. Sem ela, não haveria forma de se alcançar a paz no mundo.

Neste dia, o dia em que ele foi assassinado, o que me lembro é da noite em que rimos à beça tomando chá.

Dizem que os adolescentes riem de qualquer coisa. Hoje em dia, vejo muitos deles tristes e com raiva uns dos outros. John e eu estávamos longe de ser adolescentes. Mas minha memória de nós é que éramos um casal que ria.

Yoko Ono é artista.

Tradução do artigo The Tea Maker, publicado no site do jornal americano The New York Times em 07 de dezembro de 2010.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Quer uma moeda?

Estar ou não estar na zona do euro?

A recente entrada da Estônia no euro é um lembrete oportuno à Irlanda dos bônus e armadilhas de uma moeda única

por Brendan Keenan

Pequena e corajosa Estônia. Tendo escapado da União Soviética e encarado a ira do urso russo em várias ocasiões desde então, este minúsculo país de 1,3 milhão de pessoas agora juntou-se ao euro. Essa gente é brava, mas está boa da cabeça?

Na verdade, a entrada da Estônia é um lembrete oportuno do que o euro deve ser, e não é. É oportuno porque, na Irlanda, esses argumentos foram esquecidos no minuto em que aquelas estranhas cédulas novas apareceram nos caixas eletrônicos.

Estamos pagando um preço terrível por aquela amnésia e estamos tendo problemas para comprometer-nos com o tipo de análise racional que precedia a entrada – apesar de que quase todos estavam a favor da adesão.

Há aqueles que dizem que deveríamos deixar a moeda única, mas você fará uma difícil busca pelos detalhes de como tal evento poderia ser organizado e o que aconteceria depois.

Aqueles a cargo do assunto dizem que nunca devemos contemplar nada do tipo, mas você fará uma procura ainda mais difícil para encontrar qualquer análise detalhada de nossos líderes sobre as conseqüências de continuar a ser membro e do que acontecerá conosco se continuarmos a sê-lo.

A Estônia também oferece algumas duras lições para aqueles que anseiam pela vida sem as restrições do euro. Ela também foi espalhafatosa nos empréstimos e sofreu uma quebra horrível. A queda de 14 por cento na produção foi quase na escala irlandesa – e ela é o país mais pobre na União Europeia. Mesmo que ainda não fosse membro, a simples existência do euro exerceu uma influência nociva.

Não é necessário estar no euro para obter empréstimos em euro. Então a pobre pequena Estônia, como a Irlanda, teve acesso a todo o crédito que queria através do pool alemão de poupanças em euro, fornecidas por bancos estrangeiros – principalmente suecos. E a Suécia também não está na zona do euro.

Eles próprios tendo quase ido a bancarrota nos anos 90, sendo resgatados com sucesso, os bancos suecos se meteram novamente em todo tipo de problema, desta vez nos estados bálticos. Para cunhar uma frase, você pode manter um país fora do euro, mas não pode manter o euro fora do país.

Assim como outros europeus do leste, os estonianos foram capazes de conseguir hipotecas baratas através de empréstimos em euro. Mas eles correram o risco de suas moedas nacionais caírem e o custo dos empréstimos aumentar. Isso foi precisamente o que ocorreu em alguns casos, especialmente na Hungria – como muito bem sabem muitos irlandeses que investem em propriedades.

Essa gente é brava, mas está boa da cabeça?

A dívida estoniana ainda será dívida estrangeira, mas agora é em sua própria moeda. Tendo visto as calamidades do ano passado, eles não estarão celebrando a entrada como os membros mais antigos. Mas a perspectiva de manter seus empréstimos na moeda em que eles foram feitos é um poderoso incentivo a aderir.

Qualquer país que deixasse o euro sob pressão se veria até o pescoço de dívidas em moeda estrangeira. Aqueles que tiverem boa memória saberão que dívida externa excessiva é uma restrição ainda mais severa do que déficits governamentais.

Quanto a estes, após um programa de austeridade pela quebra, as finanças públicas da Estônia estão totalmente dentro das regras para adesão ao euro, algo que ilustra uma das falhas fundamentais destas: elas não levam em conta a dívida privada.

Seria bem melhor se eles o tivessem feito quando o euro foi formado. Melhor ainda se os governos tivessem monitorado o débito privado mais de perto. Tendo tido a bolha do euro antes de ter o euro, o mais novo membro começará obrigado a reduzir seu débito total.

Entretanto, a força das finanças públicas estonianas vai ajudar. Diferentemente da década passada, credores estão avaliando a solvência dos governos país por país. A Irlanda ainda está
segura pela pinça dos altos empréstimos do governo e da grande dívida privada. Doloroso como deve ser tal aperto, ele reflete melhor a realidade do que dar índices alemães a todos, como aconteceu nos primeiros 10 anos da moeda única.

Mas o caso da Estônia também faz lembrar as questões fundamentais à frente da Irlanda em 1999. Primeiro,  a de ordem política. Os estados bálticos teoricamente possuem a defesa na máquina militar da OTAN contra o vizinho gigante que no passado os absorveu. Mas muitos ali pensam que o “poder suave” da União Europeia e da adesão ao euro devem ser, verdadeiramente, uma proteção melhor. Parece que Moscou, com alguma frequência, sente o mesmo.

As escolhas estratégicas da Irlanda são menos rígidas, mas são reais. Enquanto existir uma moeda europeia, qual seria a posição de uma Irlanda que não pertencesse a ela?

Seria ela uma esperta Hong Kong ou Singapura do Atlântico, que poderia usar agilmente sua independência financeira para sua vantagem; ou uma impotente e mal sucedida estranha – provavelmente membro não-oficial da zona da libra esterlina, por decisão dos mercados? As opiniões devem variar, mas a escolha é tão fundamental quanto sempre foi.

Tradução do artigo To be or not to be in the eurozone?, publicado no jornal irlandês Irish Independent em 09 de janeiro de 2011.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Prometo que...

Evitando a armadilha da tentação

por Peter Singer

Algumas vezes sabemos qual a melhor coisa a se fazer, mas falhamos em fazê-la. As resoluções de Ano Novo frequentemente são assim. Fazemos as resoluções porque sabemos que seria melhor para nós perder peso, ficar em forma ou passar mais tempo com nossos filhos. O problema é que, geralmente, é mais fácil romper do que manter uma resolução.

John Stuart Mill, em sua clássica defesa da liberdade, argumentou que cada indivíduo é o melhor juiz e guardião de seus próprios interesses. Porém, pesquisas recentes sugerem que é possível fazermos uso de alguma ajuda.

Dean Karlan, professor de Economia na Universidade de Yale, examinou maneiras de ajudar algumas das pessoas mais pobres das Filipinas a alcançar seus objetivos, e descobriu que, assim como as pessoas de todos os lugares, elas tinham dificuldades para resistir à tentação de gastar o pouco que tivessem, mesmo que reconhecessem que seria melhor economizar para um objetivo que poderia fazer uma diferença mais substancial em suas vidas.

Quando tinham acesso a bancos, elas economizavam um pouco, mas então sacavam antes que alcançassem seu objetivo. Porém, se lhes era oferecida uma conta-poupança que as penalizasse por sacar dinheiro antes de alcançar um objetivo que elas próprias tivessem especificado, muitos escolheram este tipo de conta, ainda que os rendimentos que obtivessem fossem menores do que os de uma conta que permitisse fazer saques a qualquer hora que escolhessem. Usar a conta que penalizava saques prematuros ajudava essas pessoas a alcançar suas metas.

Karlan, então, mudou o foco para outras áreas em que carecemos de autocontrole e descobriu que, quando querem parar de fumar, as pessoas têm mais chances de conseguir se derem um jeito de perder dinheiro caso não consigam. Num teste customizado, 30% daqueles que arriscaram receber uma penalização pelo insucesso alcançaram seu objetivo, em comparação com apenas 5% no grupo com o controle.

Karlan discutiu seu trabalho com colegas de Yale. Como, eles se perguntaram, podemos dar incentivos mais sólidos às pessoas para que elas mantenham suas resoluções e alcancem seus objetivos pessoais? Você pode encontrar a resposta deles em um site que ajudaram a lançar, www.stickK.com, onde é possível fazer um contrato de compromisso que obrigue você a alcançar um objetivo de sua própria escolha. Então, como incentivo ao cumprimento de seu compromisso, você pode decidir por uma penalidade que deve pagar em caso de insucesso.

Por exemplo, uma forma de dar a você mesmo um incentivo maior para alcançar sua meta é se comprometer a pagar uma quantia a alguém caso você não consiga. Melhor ainda, você pode especificar que terá que pagar uma certa soma a uma causa que detesta. Se você apoia a proteção das florestas tropicais do mundo, você pode decidir que o pagamento de sua penalização irá ser destinado a uma organização que favoreça o desenvolvimento comercial da Amazônia.

Além disso, o website torna público o compromisso e permite a você ter uma torcida que lhe dará força para atingir sua meta, e que se desapontará se você não conseguir. Até agora, 45 mil pessoas utilizaram o stickK para fazer contratos de compromisso, com uma taxa de sucesso, entre aqueles que se deram incentivos financeiros, acima de 70%.

A pesquisa de Karlan e os resultados obtidos no stickK sugerem que a maioria das pessoas, quando estão pensando com calma, possui senso daquilo que é de seu interesse, mas, diante de tentações mais imediatas, é frequentemente incapaz de manter seus planos. Por exemplo, a ampla disponibilidade de máquinas de jogos eletrônicos e apostas online torna difícil para “apostadores problemáticos” parar de apostar, ainda que estes saibam que estão perdendo mais dinheiro do que poderiam. Como resultado, muitos se arruínam financeiramente, causando grande sofrimento às suas famílias, e alguns se curvam ao crime para pagar suas dívidas de apostas. Um contrato de compromisso poderia ajudar apostadores problemáticos a parar?

Durante os últimos dois anos, quase todas as apostas na Noruega requereram o uso de um cartão eletrônico. Dinheiro vivo é proibido. O cartão permite ao governo impor limites diários e mensais nas quantias que os jogadores podem perder em máquinas de jogos eletrônicos. Esta abordagem parece paternalista, e talvez o seja, mas também poderia ser defendida por prevenir as pessoas de tornar seus filhos carentes e de tornar-se – em um país como a Noruega, que sustenta seus pobres – um fardo para o Estado.

Mas o cartão também dá aos apostadores a chance de estabelecer limites para si mesmos. Eles podem estabelecer quanto irão gastar ou quanto tempo ficarão em uma mesma máquina de uma vez. Isso não é paternalismo, é apenas um estímulo para fazer uma pausa e refletir.

A ideia de oferecer aos apostadores uma oportunidade de estabelecer seus próprios limites antes de iniciar uma sessão de apostas está começando a se espalhar pelo mundo. Além da Noruega, ela existe, de várias formas, na Suécia, na Nova Zelândia e na província canadense da Nova Escócia.

A Comissão de Produtividade da Austrália estudou recentemente o valor de tais sistemas de pré-compromisso e estimou um custo social anual para as apostas problemáticas na Austrália de 4,7 bilhões de dólares, recomendando que os sistemas de pré-compromisso voluntário sejam disponibilizados para as máquinas de jogos eletrônicos. O governo, sob pressão de um membro independente do parlamento com cujo apoio conta, agora prometeu implementar as principais recomendações da comissão.

A tomada de decisões humana é complexa. Por nossa conta, nossa tendência de nos rendermos a tentações de curto prazo, e até a vícios, pode ser forte demais para nosso planejamento racional, de longo prazo. Mas quando as tentações não estão imediatamente presentes, podemos erigir barreiras que tornem menos provável que sucumbamos quando elas retornem. Saber que podemos controlar nosso próprio comportamento torna mais provável que o faremos.

Peter Singer é professor de bioética na Universidade de Princeton e professor laureado na Universidade de Melbourne.

Tradução do artigo  Avoiding the temptation trap, publicado no site do jornal canadense The Globe and Mail em 05 de janeiro de 2011.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Espetáculo à italiana

Na Itália, uma ópera política sobre ópera

por Michael Kimmelman

O La Scala de Milão abriu esta semana com uma nova e, em muitos aspectos, fora de série produção de “A Valquíria”, de Wagner. Não importando o quanto a ópera decaiu como passatempo popular neste país, o início da temporada aqui permanece como o maior evento do calendário cultural italiano, atraindo colunáveis e chefes de estado que pagam quase o preço de um Alfa Romeo usado por um ingresso e pela chance de exibir-se diante dos paparazzi e das câmeras de televisão.

Mais do que um evento social, trata-se também de algo político e simbólico. No fim das contas, um sem número de italianos se importam, ou até emitem opiniões, sobre a qualidade da música. A performance é uma notícia importante. Não há nada equivalente em outra parte da Europa ou na América.

Como de costume, Giorgio Napolitano, presidente da Itália, ocupou o camarote real. Antigo comunista e, como revelou-se, devotado wagneriano, Napolitano é um dos poucos políticos italianos que ainda desfrutam de respeito geral por aqui. Por outro lado, ausente, também como de costume, estava Silvio Berlusconi, o famigerado primeiro-ministro do país, que recentemente se pôs em lençóis ainda piores, uma vez mais, ao revelar sua opinião de que a cultura não lhe importa muito – afirmação surpreendente em uma nação tão dependente economicamente das artes. Se bem que, por estes tempos, quase nada que Berlusconi faz causa, de fato, surpresa.

Quase nada, porque os jornais aqui e na Bulgária têm revelado que Berlusconi indicou Sandro Bondi, seu Ministro da Cultura, para improvisar uma pseudo premiação no Festival de Cinema de Veneza, em setembro, para Michelle Bonev, uma atriz búlgara de 39 anos que seria sua amiga. Cerca de 530 mil dólares de verba federal teriam sido gastos para trazer a atriz e toda sua ‘entourage’ para o festival, e a Rai Cinema, braço da estatal italiana de comunicações que trata do cinema, teria sido instruída a pagar mais de 1,3 milhão de dólares pelos direitos de exibir um filme que a Sra. Bonev produziu, dirigiu e protagonizou.

Investigadores do tribunal italiano de auditores estão de olho em tudo isso. Na abertura do La Scala, pelo segundo ano consecutivo, Bondi estava notadamente ausente, incitando seus detratores a dizer que ele estava com medo de encarar os protestos, incluindo as centenas de pessoas que se acotovelavam do lado de fora do teatro antes da ópera começar, entrando em violento conflito com a polícia, em razão dos cortes no orçamento nacional das artes realizado pelo governo Berlusconi.

Do lado de dentro, antes da performance, Daniel Barenboim, regente convidado chefiando a companhia, realizou um curto discurso no púlpito. Também condenando os cortes, leu trechos do Artigo 9 da Constituição Italiana, que promete proteção ao “patrimônio histórico e artístico da nação”. A plateia aplaudiu. Da forma como estão propostos, os cortes ameaçam tirar dos trilhos a temporada 2011-2012 do La Scala, podendo fechar as portas de outros teatros notáveis de distintas cidades, incluindo o histórico teatro de Gênova, que, ao contrário do La Scala, não conta com ricos patrocinadores privados para compensar as reduções.

De sua parte, Bondi rechaçou as insinuações de que teria agido de forma covarde dizendo à mídia italiana que tinha que estar em Roma para uma votação no Senado de uma nova lei para o setor financeiro, complementando que, de qualquer forma, estava habituado a ataques por estes tempos, tendo que agüentar uma série deles por conta dos recentes desabamentos de construções no sítio arqueológico de Pompeia. Era como se a questão fosse sua saúde mental, e não a bancarrota das lideranças italianas no que diz respeito ao cuidado com o inestimável patrimônio da nação.

O desdém de Berlusconi com a cultura e as desculpas esfarrapadas de Bondi postas de lado, o que salta aos olhos sobre tudo isso é o quanto as casas públicas de ópera italianas, e a artes, de forma mais abrangente, permanecem centrais para a opinião pública, a identidade nacional e o orgulho italiano, mesmo que a maioria dos italianos de hoje não freqüentem óperas ou visitem museus. Na Grã-Bretanha, onde os cortes realizados em muitas políticas públicas incitaram protestos crescentes, incluindo um ataque ao carro transportando o Príncipe Charles nesta semana, o governo comprou o argumento dos líderes do movimento artístico de que a cultura age favoravelmente às relações-públicas e ao motor econômico. Como resultado, os cortes em instituições artísticas nacionais acabaram sendo relativamente modestos.

Aqui, porém, os cortes propostos poderiam aleijar o setor, e ainda que seja verdade que, assim como em outras áreas da burocracia italiana, as instituições culturais do país promovam um número indecente de empregos em que não se faz nada e um sistema sindical estabelecido que protege esses empregos, salvaguardar o patrimônio cultural como questão de bom senso moral e econômico, é, se alguma coisa, mais urgente na Itália do que na Grã-Bretanha. O que acontece em Pompeia e no La Scala se reflete nesta nação e em sua reputação global de forma maior do que o fazem em relação à Grã-Bretanha o que restou em pé de Stonehenge ou o Covent Garden.

Talvez isto seja a causa de por que as manchetes italianas incensaram “A Valquíria” na noite de abertura, abrindo até passagem para os sets escuros e misteriosos e para o diretor da ópera, Guy Cassiers.

Dê crédito a ele. Diferentemente de muitos outros diretores europeus, ao menos Cassiers respeita a música e o texto. Mas em meio aos globos rodopiantes de discoteca, luzes incandescentes, vídeos em câmera lenta de dançarinos se contorcendo e vulcões em erupção, e os tubos de neon vermelho pendurados como vinhas sobre o palco sem razão aparente, sua fé cativante nas habilidades de atuação dos cantores de ópera os deixou inapelavelmente exagerando nas expressões faciais, ou ficando por ali como se não soubessem muito o que fazer. “A Valquíria” é uma ópera intimista, uma suíte de encontros privados entre personagens que abrem demais seus corações uns para os outros, com mais frequência do que expõem suas entranhas. Ela exige de diretor e elenco sutileza e força, minimizações e poder extremos.

Felizmente, Barenboim extraiu tudo isso e mais da orquestra, impulsionando a música quando necessário, deixando a partitura respirar, dando a ela profundidade e tragédia, e oferecendo aos cantores espaço para sussurrar e subir a voz.

Foi pena apenas que Simon O’Neill, vivendo Siegmund, normalmente um cantor esplêndido, estivesse sentindo-se doente, e que Vitalij Kowaljow, substituindo um indisposto René Pape, tenha oferecido uma performance sólida e honrosa, mas levemente insossa como Wotan. Por outro lado, John Tomlinson arrasou como Hunding. Ekaterina Gubanova foi uma Fricka fantasticamente vingativa e cheia de frescor; e Waltraud Meier, também fora de sua plena forma, foi, não obstante, profundo e tocante como Sieglinde.

Já no que se refere a Brünhilde, Nina Stemme cantou gloriosamente. Difícil lembrar de alguém que soasse mais dominante ou à vontade no papel, e isso inclui Kirsten Flagstad.

A turma do amendoim jogou flores em Stemme durante os aplausos finais, assim como ocorreu com Barenboim e o resto do elenco – até num radiante Cassiers. Os jornais italianos do dia seguinte derreteram-se pela ovação de 14 minutos.

Não é de se admirar. O governo italiano pode estar balançando, mas, por uma noite, todo o país tinha algo a saudar.

Tradução do artigo In Italy, a Political Opera About Opera, publicado no site do jornal americano The New York Times em 10 de dezembro de 2010.
http://www.nytimes.com/2010/12/11/arts/music/11scala.html?_r=2&ref=abroad

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Patrimônios culturais?

O flamenco e a dieta mediterrânea merecem de fato o status especial das Nações Unidas?

Por tentar incluir de tudo, a lista de patrimônios intangíveis da UNESCO pode acabar surrupiada pelos interesses comerciais das nações

por Miguel Anxo Murado 

Desemprego em alta, dívida nacional, mercados; este não tem sido um bom ano para a Espanha no que se refere ao material. Mas na esfera não-material, pelo menos se julgarmos pelos padrões estabelecidos pela lista de patrimônios intangíveis da UNESCO, estamos bem melhor, já que a Espanha entrou com cinco itens na lista deste ano, do flamenco andaluz aos castelos catalães. A falcoaria e a dieta mediterrânea também obtiveram reconhecimento, dividindo este pódio intangível com, entre outras coisas, a comida mexicana, a culinária francesa, a dança das tesouras peruana e a técnica antiga chinesa de construção naval.

A UNESCO começou a compilar esta lista em 2003 para registrar bens culturais “intangíveis” que possam estar ameaçados de desaparecer, tais como canções, danças, línguas, habilidades, ideias, etc. Claro que o plano não está isento de críticas. Há aqueles que pensam que qualquer dinheiro gasto com cultura é dinheiro desperdiçado; há outros que vêem com desdém qualquer coisa feita por minorias; e há quem simplesmente não goste da ONU e critique o que quer que ela faça.

Eu não. Acho que a lista é uma boa ideia. Nossa urgência em preservar e celebrar não é apenas uma forma de contrabalançar as coisas, mas é também parte integral de nossa urgência em destruir e esquecer. As duas coisas derivam do mesmo profundo movimento humano: a curiosidade. Em termos de custo-benefício, há relativamente pouco dinheiro envolvido, e é aceitável pensar que não se desperdiça dinheiro quando ficamos sabendo, por exemplo, que ter tido suas habilidades reconhecidas pela UNESCO permitiu a camponeses de uma remota província da China obter um subsídio que, para eles, é uma verdadeira fortuna. Não, não tenho nada contra a ideia, mas tenho alguns senões quanto aos critérios, que têm sido paulatinamente afrouxados a ponto de não estar mais tão clara a razão do projeto. Pegarei dois itens da lista, o flamenco e a dieta mediterrânea, para explicar por quê.

O flamenco é uma criação cultural extraordinária, mas não é uma tradição antiga. Apesar de provavelmente originar-se de ritmos pré-existentes, trata-se de uma criação recente, desenvolvida no século 19, e ainda em processo de evolução (provavelmente tendo-o feito mais nas duas últimas décadas do que em toda a sua história anterior). Popular, bem sucedido e comercialmente viável como o é, o flamenco não parece precisar de uma proteção especial. Inclui-lo numa mesma lista ao lado de habilidades em extinção ou rituais religiosos antigos não faz mal a ninguém, mas acaba por confundir, mais do que esclarecer, as variedades da experiência cultural, além de transformar a iniciativa em uma enumeração fútil e infinita.

Mas pelo menos o flamenco é uma cultura. E o que dizer da dieta mediterrânea? Não apenas ela é intangível, como se poderia argumentar que, na verdade, ela não existe como “cultura”. Inicialmente imaginada pelo fisiologista americano Ancel Keys após a Segunda Guerra Mundial, esta dieta foi livremente inspirada em produtos e usos dos países do sul da Europa como uma alternativa mais saudável em relação aos modelos nutricionais à base de gordura, mas trata-se de uma criação, uma idealização. Ninguém segue a dieta mediterrânea na região do Mediterrâneo a não ser quando ela é recomendada por um endocrinologista. Por sinal, ressalto que quando Keys realizou sua pesquisa em Creta, a ilha estava sob severo racionamento pós-guerra, o que não faz ser surpresa alguma o fato de os locais não estarem comendo muito do que quer que fosse. De qualquer forma, tal recomendação nutricional pode até ser saudável, mas certamente não é uma tradição e malmente pode ser descrita como uma cultura. Por que, então, consagrar esta forma de lutar contra o colesterol como uma grande contribuição para o patrimônio cultural da humanidade? Receio que a resposta passe pelo interesse da Espanha e de outros países em tentar promover seus produtos agrícolas – o que é bom, mas não tem nada a ver com cultura.

Este é o problema quando se tenta ser inclusivo demais. Atores públicos e outros grupos tirarão proveito de critérios vagos para levar adiante suas agendas. A boa notícia é que eles fazem isso exatamente porque o projeto de fato funciona. Mas é também por causa disso que, caso queira defender sua iniciativa de ajudar aqueles em real necessidade, sendo mais do que um mero selo para o orgulho nacional e estratégias turísticas, a UNESCO deveria resistir a esta tendência.

Tradução do artigo Do Flamenco and the Mediterranean diet really deserve special UN status?, publicado no site do jornal britânico The Guardian em 22 de novembro de 2010.